Toda essa recente celeuma em torno de um beijo que teria sido roubado a uma mulher por um famoso jogador de futebol só foi objeto de notícia destaque na mídia nacional graças menos à qualidade de seu principal protagonista do que à constatação da persistência de uma corrente anacrônica, moralista, conservadora, xiita, que deve sua existência ao prestígio internacional de um dos mais notáveis criminalistas da década de 1940, o ex-ministro do STF Nélson Hungria, que lecionou: sendo mediante constrangimento, “o beijo na boca, na face ou no colo, se dado de forma lasciva ou com fim erótico, pode incidir no conceito legal” do grave crime. Ocorre que, até à reforma de 2009, a pretendida infração era considerada crime de atentado violento ao pudor (artigo 214). E nisso reside todo o problema. É que, à luz da mudança introduzida em 2009 no código penal, o revogado artigo 214 passou a constar da segunda parte do artigo 213, que incrimina condutas sob o nome jurídico ‘estupro’.
A questão, portanto, é saber se esse beijo dado na boca contra a vontade da pessoa que o suporta pode configurar crime de estupro. De fato, a nova lei prevê que será também considerado como tal a conduta de ‘constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, .... a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso’, que é aquele destinado a satisfazer o apetite sexual.
Importa dizer que tanto homem como mulher podem ser, por essa segunda parte do dispositivo legal, autores desse crime. O detalhe é que não precisa o agressor partir para ‘os finalmentes’, como diria o personagem de Dias Gomes, para que ocorra então o delito de estupro. Este já estará configurado na conduta assim tratada de prelúdios da relação sexual. Resta, porém, saber também se o beijo forçado na boca, porque dado na boca, pode ser considerado libidinoso. E, mesmo o sendo, será o caso de responder o agente por estupro?
Os juristas falam em beijo lascivo. De modo que, sendo na boca, portanto lascivo, uma vez que, nessa espécie, não há ósculo sem motivação ou intenção sexual, o requisito da concupiscência estaria implícito. E se houvesse violência no ato, no sentir da corrente xiita tupiniquim, o crime de estupro estaria assim consumado. Pois é justamente esse o pensamento de Hungria, que não duvida da presença do requisito da lascividade quando afirma que “já ninguém poderá duvidar, entretanto, que um desses beijos à moda dos filmes de cinema, numa descarga longa e intensa de libido, constitua, quando aplicado a uma mulher coagida pela violência, autêntico atentado violento ao pudor”. Ora, então só por isso o infeliz luxuriante, que pode ser um amante preterido, um passional exaltado, há de responder pelo hediondo crime de estupro, com toda sua carga emocional subjacente de imoralidade, vileza e monstruosidade?
Então ignoramos que o beijo hoje é de nosso cotidiano? Que aparece a todo momento nos programas de televisão, nas novelas, em todas as suas modalidades? Que vão desde o mais inocente ao mais sensual e erótico? É porque isso é também da natureza humana, e acontece na vida real o mesmo que se dá nos contos, poemas e romances. E se as circunstâncias favorecem... como um ambiente de festa, à noite, com decotes e gestos sensuais, álcool e lubricidade no ar e na caixa de som...
Óbvio que isso não dá o direito a ninguém de querer submeter à força o outro aos caprichos de seu animalesco instinto sexual. Mas daí a tratar o beijoqueiro compulsivo, fetichista, que age violentamente, como estuprador, é desconsiderar o princípio ético-jurídico da razoabilidade, da proporcionalidade na aplicação das penas, no tratamento da infração e seu infrator.
A propósito, como iríamos tratar os nossos adolescentes nesse caso? Sim, porque os atos infracionais que cometem têm perfeita correlação com as condutas incriminadas pelo código penal. Eles responderiam a título de ato infracional grave por seus beijos inconsequentes e molestadores?
Não que devesse ficar impune o autor desse ato, de qualquer forma reprovável, haja vista o emprego de violência. Mas ele poderia muito bem responder pela infração prevista no artigo 61 da lei das contravenções penais, por importunação ofensiva ao pudor, que, mesmo em caso de condenação, não o privaria de sua liberdade. É isso.